- Kälï: A Mulher mais Poderosa do Universo -
Kali
personifica os três aspectos do ato cósmico, que se revelam na criação,
na preservação e na aniquilação. Ela é a divindade mais misteriosa de
todas as ordens religiosas indianas – no Budismo, no Jainismo, entre os
seguidores de Vishnu ou Shiva, ou qualquer outra. Ela faz gestos que
asseguram a ausência de medo (abhaya) e benevolência (varada), definindo
perpetuamente sua disposição mental mais profunda. Porém, em contraste,
a aparência da Deusa inspira sentimentos de espanto e terror,
espalhando a morte com a espada nua que carrega em uma de suas mãos e se
alimentando com o sangue que jorra dos corpos que mata. Os instrumentos
de destruição, para ela, são meios de preservação. Seu caminho de
passagem para a vida é através da moradia que Ela escolheu – o terreno
de cremação, iluminado por piras queimando e cheio dos ecos de gritos
dos chacais e dos fantasmas, que pairam sobre cadáveres desmembrados.
A Deusa mais sagrada, Kali, partilha sua moradia com terríveis
monstros que comem carne humana (pishachas) e é representada montada
sobre um cadáver. Ela ama Shiva, mas só se une com o seu cadáver
(shava), seu corpo passivo e morto, sendo ela própria o agente ativo.
Ela se alegra com a destruição e ri, mas apenas para fazer com que os
quatro cantos da Terra e do Céu tremam de terror. Sendo uma mulher, Kali
gosta de se enfeitar, mas seus ornamentos são uma guirlanda ou um colar
de cabeças humanas decepadas, um cinto com braços humanos cortados,
brincos com cadáveres de crianças, braceletes de serpentes – tudo com
aparência horrível e lamentável. A essência de Kali é essa fusão de
contradições, um misticismo com o qual nenhuma outra divindade foi
dotada. Vashishtha Ganapati Muni disse corretamente sobre ela:
"Tudo aqui é um mistério de contrários, trevas, uma luz mágica que
oculta a si própria, sofrimento, uma máscara secreta do êxtase trágico, e
morte, um instrumento de vida perpétua."
O que define Kali e
também o cosmos que Ela manifesta, é a fusão de contrários – não apenas
como duas coisas que existem juntas, mas como dois aspectos essênciais
da unidade. Do útero, que é mais escuro do que os recessos mais
pro-fundos do oceano, onde nenhum raio de luz jamais chega, surge a
vida. Da mesma forma, das trevas nasce a luz brilhante, e quanto mais
profunda a escuridão, mais brilhante essa luz. Uma realização que
contrasta com o sofrimento, pois a alegria é a face brilhante do
sofrimento – o filho que nasce dela, por contraste. A árvore nasce
quando a semente explode e sua forma é destruída, isto é, a vida é o
renascimento da morte, e sua forma, toda sua beleza e vigor, é a
deformação incarnada. A unidade interrelacionada dos contrários define
ambos, cosmos e Kali. A Deusa de tonalidade escura, que representa nela
própria as trevas, o sofrimento, a morte, a deformação e a feiúra, é a
fonte mais poderosa de vida, luz, alegria e beleza – o aspecto positivo
da criação. Ela destrói para recriar, produz sofrimento para que a
alegria se revele melhor, e em sua forma assustadora deve-se ultrapassar
todos os medos, não escapando deles, mas aceitando-os como bem-vindos.
A invocação da luz é comum a todas as ordens religiosas e todas
as divindades. Na invocação a Kali, o devoto se confronta com as trevas
que agregam morte, destruição, sofrimento, medo e todos os aspectos
negativos do universo. Não sendo sua presa mas sim um guerreiro valioso,
o devoto procura superar as trevas e descobrir tudo o que elas ocultam –
luz, vida, alegria e até mesmo a libertação do ciclo de nascimentos e
mortes. Kali lhe dá assistência em sua batalha. Ela concede sua graça ao
seu devoto que adquire assim o domínio sobre todas as trevas cósmicas –
acessíveis ou inacessíveis, conhecidas ou desconhecidas, ou impossívels
de conhecer, que Ela condensa em si própria. Se não estivessem
condensadas assim, o devoto não poderia apreender e controlar sua
imensidão cósmica. Kali é a divindade suprema dos Tantrikas, pois nela
eles descobrem o instrumento que lhes permite comandar diversas forças
cósmicas de uma única vez. A antiga popularidade de Kali entre as tribos
primitivas ignorantes foi inspirada, talvez, por seu poder de revelar a
luz a partir das trevas, algo que eles possuem dentro e fora e em
grande abundância. Por outro lado, Kali assegura a luz perpetuamente. Em
cada ciclo, uma caminhada que parte da luz termina nas trevas, mas
aquela que se inicia nas trevas deve necessariamente chegar aos vales da
luz ilimitada.
Invocar e associar-se ao terrível – o aspecto
negativo da criação – afastando assim os males e sua influência, é um
culto primitivo que ainda permanece em vários grupos étnicos e mesmo nas
tradições clássicas como o Budismo, que tem muitas divindades que
inspiram terror, como Kali, ou na tradição grega de Nêmeses, as mulheres
cheias de ira que infligiam castigos pelos erros e realizavam a
purificação através de um azar vingativo. Mesmo sem ter a amplitude
cósmica de Kali, nem atingindo objetivos tão amplos quanto o comando dos
elementos cósmicos, há temas como o dragão chinês, ou o memento mori,
na forma de um esqueleto considerado muito auspicioso por alguns setores
da sociedade russa, ou a semurga do mundo islâmico, formas animais
grotestas e temíveis, máscaras de fantasmas... veneradas em todo o
mundo, todas revelam a busca humana para se tornar benéfica ou mais
branda a influência de algum aspecto terrível da natureza – do cosmos
manifesto
- ORIGEM DE KALI -
O misticismo encobre não apenas sua forma, mas também a origem de
Kali. Há três linhas mais significantes que foram traçadas para
encontrar sua origem, embora Ela transcenda mesmo essas fontes. Algumas
vezes Ela é vista como uma transformação, ou uma forma que se
desenvolveu a partir de alguma das divindades dos Vedas citada nos
Brahmanas e Upanishads, especialmente Ratridevi, a Deusa da noite
profunda, também chamada Maharatri, a Noite Transcendental, e Nirtti, a
dançarina cósmica. Alega-se que o aspecto mais sombrio de Kali se
desenvolveu a partir de Ratridevi, e sua dança, que ele realiza para
destruir, teria se originado na dança cósmica de Nirtti que também
pisava sobre tudo o que caía sob seus pés. A Mundaka Upanishad fala
sobre as sete línguas de Agni, sendo que uma delas atua no local de
cremação e devora os mortos. Dando grande ênfase à associação entre Kali
e esta língua de Agni com o local de cremação, alguns eruditos
procuraram na língua de Agni a origem da forma de Kali.
Embora
variem em suas versões, os Puranas percebem Kali como um aspecto da Devi
– a Deusa, uma divindade que agora está quase completamente fundida com
Durga. No entanto, considerando o status da própria Kali como uma
Deusa, assim como o culto muito difundido dela, que prevalece entre
várias tribos e grupos étnicos espalhados em áreas rurais remotas, Kali
parece ser uma divindade antiga e talvez pré-Vêdica.
Como seu
nome sugere, ela parece ser o aspecto feminino de Kala – o tempo –
aquele ser invencível, imensurável e infinito que tem sido venerado como
Mahakala – o tempo transcendental – representado na tradição indiana
metafísica e religiosa por Shiva. Na terminologia religiosa, Mahakala é
apenas outro nome de Shiva. Alguns ícones do vale do Indus parecem
representar, além de Shiva, uma divindade feminina feroz, que poderia
ser Kali uma provavelmente uma forma que a precedeu.
O Budismo,
uma corrente de pensamento que se opôs à percepção dos Vedas na maioria
das coisas, introduziu no seu panteão Mahakala e um divindade feminina
feroz que se manifesta sob várias formas, como sendo a contraparte
feminina de Mahakala. Obviamente, o Budismo deve tê-la introduzido a
partir de uma fonte não Vêdica, já que se opunha veementemente aos
Vedas. Invocada com grande fervor em muitas ocasiões no Mahabharata,
mais especialmente no Bhishma-Parva, um pouco antes do ponto onde o
Senhor Krishna apresenta seu sermão do Gita, Kali parce ser uma
divindade bem estabelecida durante os dias do épico, ou seja, séculos
antes do início da era dos Puranas. Embora invocada como "arya", um
termo que indica grande reverência, Arjuna a louva como uma mulher
tenebrosa com guirlanda de crânios, com a pele semelhante ao bronze
escuro... e com epítetos como Mahakali, Bhadrakali, Chandi, Kapali...
características que ainda são relevantes na iconografia de Kali.
Um grande número de textos do período que vai do século II ao IX,
como Kumarasambhava de Kalidasa, Vasavadatta de Subandhu, Kadambari de
Banabhatta, Malitimadhava de Bhavabhuti e Yashatilaka de Somadeva,
também fazem alusão a Kali, um fato que indica sua grande popularidade
em domínios diferentes da religião. Esta Kali transcende de forma
essencial Ratridevi, Maharatri e Nritti dos Vedas, ou uma das sete
línguas de Agni, ou uma forma divina que tivesse surgido a partir delas.
No entanto, não se pode atribuir esta ou aquela origem a Kali.
Mesmo se tiver sido uma deusa de origem antiga das tribos primitivas,
ela tem uma amplitude e poder muito superior ao que as divindades
primitivas benfazejas geralmente tinham. Ela não pode ser tratada como
uma mera divindade tribal de origem indígena, a menos que se sacrifique
sua absoluta familiaridade e seu status na linha Hindu tradicional. Além
disso, não podemos atribuir à tradição sua criação absoluta, pois isso
comprometeria seu status de Deusa e ela seria reduzida a algo que não é.
Seja qual for sua origem, talvez indígena, Kali surge na
tradição com uma reverência e impulso muito maior do que se atribui aos
demais deuses. Ela não é um mero epíteto ou aspecto de outra Deusa. Ela
foi concebida como o poder (Shakti) do Tempo (Kala). Como Kala, Ela
permeia todas as coisas, manifestas ou ocultas. Os Puranas percebem Kali
como a cólera personificada de Durga – a incorporação da fúria – mas de
qualquer forma Ela é sua verdadeira Shakti. Mesmo furiosa, Durga invoca
Kali para realizar o que ela própria não consegue fazer. Depois que
Durga separa Kali de si própria e Kali emerge com sua própria forma – um
ser independente – Ela reina suprema em todo o panteão Hindu, com
relação ao seu poder de destruir e vencer os inimigos.
Kali não é
meramente o poder de Durga, ela também foi concebida como o aspecto
dinâmico do Senhor Shiva. Em uma relação deliciosa, o "a" de Shava e
Kala nega o que é realizado pelo "i", o componente principal de Shiva e
Kali. Shava é o corpo sem vida, aquilo que sobra no universo manifesto
quando o Poder do Tempo o toma sob seu controle, e Kala é o que se
revela apenas no aspecto manifesto do universo, e assim ambos são
limitados. Quando o "i", simbólico da energia feminina, que se manifesta
como Kali, se une a eles e transforma Shava em Shiva e Kala em Kali,
ambos emergem como ilimitados, atemporais. Este universo está contido em
Shiva, e assim, nele ocorre a transição do que é temporal para o
atemporal. Kali, que é o Poder do Tempo, não sofre essa transição.
- KALI NOS PURANAS-
Ocorrem alusões a Kali em alguns Puranas antigos. No entanto, a visão mais elaborada a respeito de sua origem, aparência, personalidade, poder e feitos aparece no Devi Mahatmya, do século V ou VI, uma parte do Markandeya Purana.
O Devi Mahatmya contém uma meditação (dhyana) independente sobre Mahakali, e usa os nomes de Kali como Bhadrakali, Kalika, Chandika, ... como epítetos da Devi, em suas diferentes partes. Há, no entanto, dois episódios que expõem de forma mais completa sua origem, papel e outras coisas. Um deles está relacionado com Chanda e Munda, os ferozes demônios que ela mata, e outro, a Rakta-bija.
Os deuses haviam sido derrotados e atirados para fora de sua moradia divina (devaloka) pelos demônios Shumbha e Nishumbha, generais de Mahisha. Os Devas louvaram a Devi e a invocaram para que viesse em seu socorro e libertasse sua morada dos terríveis demônios. Devi, que estava se banhando no rio Ganga sob a forma de Parvati, ouviu o louvor dos deuses e se perguntou a quem eles estavam louvando. Quando ela perguntou isso, brotou dela própria uma forma feminina – uma beleza encantadora que tinha um brilho único, envolta em juventude, ricamente adornada por jóias e com roupas brilhantes. Ela respondeu que era a ela que eles louvavam. Então ela foi para a região que estava infestada pelo exército de Shumbha e se assentou sozinha sob uma árvore. Ouvindo um mensageiro falar sobre sua aparência, Shumbha desejou intensamente se casar com ela e lhe mandou sua proposta. No entanto, a jovem divina enviou de volta seu mensageiro dizendo que ela somente se casaria com alguém que a vencesse em uma batalha.
Pensando que uma jovem sem armas nas mãos não era um desafio significativo, Shumbha mandou um pequeno contingente para lutar com ela e capturá-la. A Deusa o derrotou e destruiu, e também um após outro, todos os contingentes que vieram depois. Finalmente, com um enorme exército de demônios comandados pelos generais Chanda e Munda, os próprios Shumbha e Nishumbha vieram lutar contra a Deusa. Vendo Chanda e Munda avançando contra ela, a Deusa se incendiou de fúria. Como o Devi Mahatmya descreve,
"Das sobrancelhas de sua testa brotou imediatamente Kali, com sua face assustadora, carregando espada e laço. Ela portava um estranho bastão coroado por um crânio e tinha uma guirlanda de cabeças humanas, estava envolta em uma pele de tigre, e parecia horrorosa com sua pele macilenta, sua boca escancarada, aterrorizando com sua língua para fora, com olhos afundados e vermelhos, e uma boca que enchia os quatro cantos com rugidos."
A Deusa pediu a Kali que destruísse o exército dos demônios, em particular Chanda e Munda. Kali infligiu grande destruição à sua volta, dançou sobre os cadáveres, matou Chanda e Munda e como troféus de guerra trouxe à Deusa suas cabeças decepadas. A Deusa atribuiu a Kali o epíteto de Chamunda – destruidora de Chanda e Munda. As mortes de Chanda e Munda enfureceram fortemente Shumbha e Nishumbha e eles, com os demônios sob seu comando, incluindo Rakta-bija e outros de seu clã, atacaram a Deusa e a cercaram, juntamente com Kali, por todos os lados. Para enfrentar seu imenso número, a Deusa invocou as Sete Mães (Sapta Matrikas) Brahmani, Maheshvari, Kumari, Vaishnavi, Varahi, Narsimhi e Aindri, os poderes de todos os grandes Devas, Brahma, Shiva, Skanda, Vishnu e Indra.
Seguiu-se uma batalha feroz, porém o que mais perturbou a Deusa foi a multiplicação de Rakta-bija, pois este tinha um dom pelo qual surgia um novo demônio Rakta-bija de todos os lugares onde caísse uma gota de seu sangue. Finalmente, a Deusa chamou Kali para beber o sangue de Rakta-bija antes que caísse sobre o solo. Com uma boca escancarada, devorando multidões de demônios, e com uma língua que se estendia em todas as direções e que se movia mais depressa do que o demônio, Kali consumiu cada gota de sangue que saía das feridas de Rakta-bija.
Kali é venerada como a Deusa que garante sucesso na guerra e elimina os inimigos – não apenas no Devi Mahatmya, mas em quase todos os Puranas, particularmente no Agni Purana e no Garuda Purana.
O Skanda Purana associa a origem de Kali a Parvati. Inicialmente, Parvati tinha uma aparência escura, e por isso Shiva costumava caçoar dela de vez em quando. Um dia, depois de ser chamada duas vezes de Kali (a Negra), Parvati abandonou Shiva e disse que não retornaria a menos que se livrasse de sua aparência escura. Depois que Parvati partiu, Shiva se sentiu muito só. Aproveitando sua ausência e a solidão de Shiva, um demônio chamado Adi, que estava procurando uma oportunidade para matá-lo e se vingar da morte de seu pai, disfarçou-se como se fosse Parvati e conseguiu entrar no quarto de Shiva. Depois de algum tempo, Shiva identificou o demônio e o matou. Enquanto isso, por um ascetismo rigoroso (tapas) e com a ajuda de Brahma, Parvati foi capaz de se desfazer de sua camada externa negra, e de dentro emergiu sua forma dourada. Transformada em Gauri (a dourada), ela retornou a Shiva. Os Deuses, procurando uma forma feminina que pudesse matar Mahisha, transformaram com sua luz esta casca negra de Parvati em Kali, e depois que ela realizou o desejo dos Deuses, Parvati a baniu para a região que fica depois da montanha Vindhya, onde ela se tornou conhecida como Katyayani.
O Linga Purana contém ainda um outro episódio responsável pela origem de Kali. Um demônio chamado Daruka tinha um dom de que apenas uma mulher poderia matá-lo. Quando chegaram relatos de suas atrocidades, Shiva pediu a Parvati que o matasse. Então Parvati entrou no corpo de Shiva, e a partir do veneno que estava contido em sua garganta ela se transformou e reapareceu como Kali. Ela reuniu um exército de Pishachas que comem carne humana e com sua ajuda destruiu Daruka. O Skanda Purana amplia mais essa história. Kali não parou a destruição mesmo depois de matar Daruka. Embriagada pelo consumo do veneno e pelo sangue do demônio, Kali se tornou incontrolável, enlouquecida, e por suas atividades destrutivas colocou em perigo o equilíbrio cósmico. Finalmente, Shiva assumiu uma das formas da própria Kali e sugou dos seios dela todo o veneno. Depois disso, ela se acalmou.
No Sul da Índia prevalece uma tradição semelhante, embora em um contexto diferente. Depois de derrotar Shumbha e Nishumbha, Kali se retirou para uma floresta com sua escolta de companheiros terríveis e começou a aterrorizar a vizinhança e seus habitantes. Um devoto de Shiva foi até ele com o pedido de livrar a floresta do terror de Kali. Quando Kali se recusou a obedecer a Shiva, alegando que estava no seu próprio território, Shiva lhe pediu que competisse com ele dançando. Ela concordou, mas não conseguindo (ou não querendo) atingir o nível de energia de Shiva, Kali foi vencida e saiu.
A origem de Kali também foi associada a Sati (a primeira esposa de Shiva) e com Sita (esposa do Senhor Rama) – embora não seja uma conexão muito significativa. Em um relato, quando é insultada por seu pai Daksha, Sati se torna furiosa, esfregou seu próprio nariz e daí apareceu Kali. Em outro relato, Rama estava retornando a Ayodhya depois de vencer Ravana. Em seu caminho ele encontrou um monstro que o assustou tanto que o sangue de Rama se congelou de medo. Então Sita se transformou em Kali e o derrotou
- KALI: APARÊNCIA E PERSONALIDADE -
As
manifestações de Kali são numerosas. No entanto, sua aparência externa,
tanto nos textos quando na arte, assim como sua natureza básica e
personalidade geral, não variam muito. Na sua forma usual de cor negra,
Kali é uma divindade terrível que inspira temor, que assusta a todos por
sua aparência. Ela está sempre nua, embora algumas partes de seu corpo
sejam cobertas por seus ornamentos. Uma figura macilenta, com longo
cabelo desgrenhado e uma face repulsiva, Kali já foi concebida com
qualquer número de braços, de dois até dezoito, e algumas vezes até mais
de vinte, embora sua forma mais usual tenha quatro braços. Eles são
interpretados como simbolizando sua capacidade de agir e dirigir as
quatro direções do espaço, ou seja, todo o cosmos.
Ela tem
longas presas afiadas, e longas e feias unhas, um terceiro olho na testa
que emite fogo, uma língua esticada e uma boca suja de sangue que,
quando se expande, não apenas engole multidões de demônios, mas que
abrange desde as profundezas do oceano com sua parte inferior até o fim
dos céus, com a superior. Quando precisa lamber o sangue que cai do
corpo de um demônio que foge, ela estica sua língua tanto quanto seja
necessário e a gira mais depressa do que o vento, para qualquer direção
em que o sangue caia.
Na sua iconografia mais usual, Kali
carrega em uma de suas quatro mãos uma espada desnuda – seu instrumento
para vencer os inimigos e comandar os males; em outra, a cabeça cortada
de um demônio, e as outras duas mostram gestos que indicam ausência de
medo e benevolência (abhaya e varada). Algumas vezes, a cabeça decepada é
substituída por uma cuia feita de crânio, cheia de sangue.
Abhaya é a essência de todo o ser de Kali. Abhaya é uma das suas
disposições mentais permanentes, é sua garantia contra todos os temores
que, incorporados nela, se tornam inoperantes ou que apenas agem sob o
seu comando. Indicando seu poder ilimitado de destruição, o aspecto
assustador de Kali é seu poder para dispersar o mal e o perverso, e com
isso se assegura novamente a ausência de medo.
O lugar usual
de Kali é um campo de batalha, onde estão espalhados por toda parte
lagos de sangue, corpos sem cabeça, cabeças decepadas, braços e outras
partes cortadas. Quando não está no campo de batalha, Kali vagueia pelos
campos de cremação, onde reina o silêncio da morte, exceto quando ele é
quebrado pelos ventos que assobiam, pelos resmungos dos chacais e pelo
som das asas dos abutres que rasgam os cadáveres. A escuridão abissal
desses lugares, ocasionalmente iluminada pelas chamas das piras
funerárias, é o que mais convém a Kali. No campo de batalha e em outras
situações, ela caminha descalça. Exceto raramente, quando toma
emprestado ou pela força o leão de Durga ou o búfalo Nandi de Shiva,
Kali não usa um veículo, um animal ou qualquer outra coisa, seja para se
deslocar ou para ajudá-la na sua batalha.
Ela dança para
destruir, e sob seus pés que dançam há o cadáver da destruição. De pé ou
sentada, ela tem debaixo de si um cadáver esticado com o pênis ereto –
não a flor de lótus, que é o assento favorito da maioria das divindades.
Ela se coloca sobre a não-existência – o cadáver do universo destruído,
mas que apesar disso contém a semente de um novo nascimento.
Na sua iconografia, enquanto o cadáver representa a não-existência ou o
universo destruído, a figura de Kali unida a Shiva ou ao seu cadáver
(Shava) simboliza o contínuo processo de criação. O universo manifesto é
aquilo que é envolto pelo tempo, mas quando Kali, o Poder do Tempo,
destruiu o universo manifesto, esse véu se ergue e o Tempo, assim como
Kali, o Poder do Tempo, se torna des-nudo, um fenômeno indicado pela
nudez de Kali.
Por sua natureza, Kali está sempre faminta e
nunca é saciada. Ela ri tão alto que todos os três mundos estremecem de
terror. Ela dança loucamente, não apenas pisando sobre cadáveres, mas
também sobre o cosmos vivo, reduzindo-o à não-existência. Ela espreme,
quebra, pisa e queima seus inimigos ou os de seus devotos.
Kali não apenas é uma divindade de natureza independente, mas é também
indomável, ou melhor, ela domina tudo. Ela é poderosa como Shiva, foge
às convenções e fica mais à vontade quando reside à margem da sociedade.
Seu estilo de vida não tem aspectos de nobreza ou do modo de vida da
elite. Ela é consorte ou companheira de Shiva, mas não tem o jeito meigo
e humilde de Parvati. Sendo ela própria selvagem e destruidora, ela
incita Shiva a um comportamento selvagem, perigoso e destrutivo,
ameaçando a estabilidade do cosmos. Eternamente uma guerreira, Kali não
perde uma oportunidade para lutar. Ela é um dos guerreiros de Shiva em
sua batalha contra Tripura.
- AS FORMAS DE KALI -
Um
imenso corpo de mitologia sobre Kali se desenvolveu na tradição
popular, mais do que nos textos. Em toda aldeia, mesmo que tenha apenas
uma dúzia de cabanas, há um canto no qual se vê uma imagem grosseira de
Kali pintada em preto, com a língua vermelha como o sangue. Também se
espalham por toda parte as histórias de seus poderes misteriosos, tanto
de produzir danos quanto de proteger dos males. Sua presença é mais
significativa ainda na arte indiana, onde ela aparece associada a muitos
temas hindus importantes. Aquilo que algumas vezes aparece nos textos
como meros epítetos de Kali, são formas bem esta-belecidas dela, na arte
indiana. Mahakali, Bhadrakali, Dakshina Kali, Guhyakali, Shmashana
Kali, Bhairavi, Tripura-Bhairavi, Chamunda... são algumas de suas formas
mais populares, tanto nos textos quanto nas artes.
Na sua
forma de Mahakali, ela é equivalente a Mahakala – o aspecto onipotente
de Shiva, que devora o tempo e dissolve tudo. Kali é a transformação
feminina de Mahakala. Em sua forma de Mahakali, ela preside à Grande
Dissolução que é simbolizada por Shiva sob a forma de Shava. Na arte,
Kali invariavelmente o conserva como uma relíquia. Inicialmente, como
Mahakali, seu papel estava limitado à destruição do demônio. Nos
Puranas, embora ainda representando dissolução, destruição, morte e
envelhecimento, ela personifica mais enfaticamente horror, medo,
repugnância. Ela ainda mata demônios, mas principalmente quando é
convocada, e mantida sob controle. Em sua forma de Chamunda – a
destruidora de Chanda e Munda – ela era um matador de demônios feroz,
com muitos braços. Ela carregava nas suas mãos muitas armas mortais e em
seus olhos uma luz que queimava seus inimigos.
Sob a forma de
Shmashana Kali, mais popular no Tantrismo, Kali freqüenta um terreiro de
cremação entre as piras que queimam – o domínio intermediário entre
este mundo e o próximo, onde a morte e a dissolução reinam.
Como Tripura Bhairavi, consorte da morte, Kali é concebida com uma forma
que porta um longo colar de corpos humanos, um menor de crânios, uma
guirlanda de mãos cortadas, e brincos de cadáveres de crianças. Em volta
dela há muitos cadáveres dos quais se alimentam chacais astutos e
abutres repulsivos. Tripura Bhairavi às vezes usa uma tanga, mais
geralmente está coberta por uma pele de elefante, e tem outros atributos
associados a Shiva.
Dakshina Kali, que é enfeitada por jóias,
também usa um longo colar de cabeças cortadas, uma guirlanda de braços
muito pequenos cortados, e um par de cadáveres como brincos, mas em vez
de ser repulsiva sua aparência expõe membros jovens e macios, com
proporções perfeitas. Ela está sobre o corpo de um Shiva deitado, com o
pênis ereto, em uma pira queimando no terreiro de cremação, onde aves de
rapina pairam e os chacais vagueiam. Em uma de suas mãos, Dakshina Kali
tem uma espada, em outra uma cabeça humana, e nas outras duas mostra os
gestos de Abhaya e Varada.
Bhadra Kali, a auspiciosa, que é a
forma majestosa, benigna, benevolente e suave de Kali, foi concebida
com um número de braços que costuma variar de dois a quatro. Ela
geralmente carrega duas tigelas, uma para vinho e a outra para sangue. A
forma de Kali que os deuses cultuam invariavelmente, mesmo Shiva,
Vishnu e Brahma, é a de Bhadra Kali. Ela se delicia, ela bebe, dança e
canta com alegria.
Guhyakali, que significa literalmente “a
Kali secreta”, é o aspecto esotérico de Kali, que é conhecido apenas
pelos que conhecem bem a tradição de Kali. Na sua forma que se revela
quando se medita nela (dhyana), as serpentes constituem uma parte
significativa de seus adornos. Seu colar, o cordão sagrado e o cinto são
todos feitos de serpentes, e a serpente Ananta com mil cabeças é seu
guarda-sol. Além disso, sua forma assimila outros atributos de Shiva,
incluindo um crescente lunar na sua testa. Na representação visual, em
vez da ênfase em serpentes, Guhyakali é identificada pelo Kali Yantra,
com o qual é invariavelmente representada.
- KALI NO YOGA E NO TANTRA -
Kali
tem um lugar muito significativo no Yoga e no Tantra, embora no Yoga
seu status não seja tão elevado quanto no Tantra. O despertar da
Kundalini (Kundalini sadhana), da energia adormecida que é vista como
uma serpente negra que faz enrolada e adormecida no corpo interno, é uma
prática principal em ambos, mas é a verdadeira base do Yoga. O Yoga
percebe Kali como o poder enrolado, Kundalini Shakti. Kali é assim a
base do Yoga, embora além dessa equivalência ele não invoque mais Kali.
O Tantra procura sua realização nas dez Grandes Sabedorias
(Mahavidyas). Kali, sendo a principal delas, é a divindade mais
significativa do Tantra. O comportamento disruptivo de Kali, sua
aparência descuidada, atividades de confronto e envolvimento com morte e
impureza, são o que convém mais ao Tantra, especialmente o da mão
esquerda (vamachara). A forma de Kali que contém em uma estrutura
corporal impura e mesmo pecaminosa a maior santidade espiritual ajuda o
seguidor do Tantra a superar a noção convencional de puro e impuro,
sagrado e profano, e outros conceitos dualísticos que levam a uma
natureza incorreta da realidade. Os textos Yogini Tantra, Kamakhya
Tantra e Nirvana Tantra veneram Kali como a divindade suprema, e o
Nirvana Tantra percebe Brahma, Vishnu e Shiva como provenientes de Kali,
como bolhas brotam do mar.
Para o seguidor do Tantra, a cor
negra de Kali é um símbolo de desintegração: como todas as cores
desaparecem no preto, assim todos os nomes e formas se misturam nela. A
densidade do negro – massivo, compacto e sem mistura – representa a
consciência pura. Kali, vestida de espaço (digambari), em sua nudez,
livre de toda cobertura ilusória, define para o seguidor do Tantra a
caminhada do irreal para o real. Em Kali com seios repletos, que
simbolizam sua maternidade incessante, o seguidor do Tantra descobre seu
poder de preservar. Seu cabelo desgrenhado (elokeshi) representa a
cortina da morte que cerca a vida com mistério. Em sua guirlanda de
cinqüenta e duas cabeças humanas, cada uma representando uma das
cinqüenta e duas letras do alfabeto sânscrito, o seguidor do Tantra
percebe um tesouro de poder e conhecimento. O cinto de mãos, o principal
instrumento de trabalho, revela seu poder com o qual o cosmos atua, e
em seus três olhos, sua atividade tríplice – criação, preservação e
destruição. Tanto Kali quanto Tantra são uma síntese da unidade do
dualismo aparente. Assim como na sua imagem aterrorizante, o aspecto
negativo de seu ser (e, portanto, do cosmos), é a força vital criadora, a
fonte da criação, da mesma forma no caminho do Tantra a viagem começa a
partir daquilo que é material, até o ápice – o supremo.
Prof. P.C. Jain & Dr Daljeet
fonte : http://www.shri-yoga-devi.org/
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